( Lúcia Santos,pág.3;
Edição Apei (janeiro/abril2013)
“A casa dos meus pais
onde vivi em criança ficava numa rua com uma fileira de casa só de um lado. A
meio da rua, a mercearia da senhora Maria, numa ponta, um monte com algum
mistério, e a seguir, outra fileira de casas. Do outro lado da estrada,
saltando o muro ou subindo a ribanceira, um enorme campo de ervas onde caçávamos
e aprisionávamos grilos e fazíamos bolos de lama aproveitando as poças de chuva
mais resistentes. Havia algumas oliveiras, perfeitas para trepar, saltar dos
ramos e ver quem atingia a distância maior para atar cordas e fazer baloiços. A
seguir, um pinhal! Falta acrescentar que a rua era ligeiramente inclinada e de
alcatrão. Ainda é, mas hoje já não se vêem carros de rolamentos a rolar por ali
abaixo, ninguém sente a adrenalina da descida nem leva joelhos esfolados no
asfalto para casa. Apenas os carros circulam para cima e para baixo.
Mas o pinhal era o grande
desafio, primeiro luminoso, depois cada vez mais denso e escuro. Avançávamos em
grupo, imaginando homens do saco, malfeitores, mas sobretudo os soldados do Príncipe
João que perseguiam os bons, os livres e os justos pela floresta de Sherwood. Avançávamos
corajosamente munidos de espadas, fisgas, arcos e flechas. Tínhamos um enorme
arsenal destes artefactos bélicos construídos depois da escola, muitas vezes às
escondidas, ou imaginávamos nós que era às escondidas mas na realidade não era,
e nunca sem ouvir um ralhete mais aceso porque devíamos estar a fazer deveres
de casa. “ As crianças têm que brincar! “, ouvia-se. Nada mais verdadeiro! E brincávamos.
Nunca chegámos a vias de facto com os homens do Xerife de Nothingham: eles
fugiam quando pressentiam a nossa presença.
Éramos os reis da
floresta, e tínhamos aquele sentimento de estar bem uns com os outros e com a
vida. Hoje vemo-nos pouco, crescemos, todos temos as nossas vidas moderna e
atarefadas, mas quando nos encontramos somos os amigos de sempre, exploradores
de territórios desconhecido e improváveis e ainda capazes de escolher o melhor
galho para limpar com a navalha e fazer um arco e flecha. As culturas da
infância mudam com o tempo, mas a Natureza continua lá com um manancial inesgotável
de sensações e experiências, de descoberta e bem-estar a que é indispensável
regressar.”
Sem comentários:
Enviar um comentário